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Caldas da Rainha - Passado Presente e Futuro

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Liberdade Sofrida…

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Liberdade de Pensamento - Stuart Carvalhais

O grande Stuart Carvalhais publicou este desenho em «A Lanterna»: Cristo agarrado por um homem da Formiga Branca e por um polícia municipal, sendo levado à presença de Afonso Costa.



«Em tempos pensei que tinha sido ferido como homem algum jamais o fora. Por sentir isso, jurei escrever este livro. Mas muito antes de começar a escrevê-lo a ferida cicatrizou. Como jurara cumprir a minha tarefa, reabri a horrível ferida. Deixem-me explicar por outras palavras. Talvez ao abrir a ferida, a minha própria ferida, tenha fechado outras feridas, feridas de outras pessoas. Morre qualquer coisa, floresce qualquer coisa. Sofrer na ignorância é horrível. Sofrer deliberadamente, para compreender a natureza do sofrimento e aboli-lo para sempre, é muito diferente. O Buda, como sabemos, teve toda a vida um pensamento fixo no espírito: eliminar o sofrimento humano.
Sofrer é desnecessário. Mas temos de sofrer para compreender que é assim.
Além disso, é só então que o verdadeiro significado do sofrimento humano se torna claro. No derradeiro momento desesperado - quando não podemos sofrer mais! - acontece qualquer coisa que tem a natureza de um milagre. A grande ferida aberta pela qual se escoava o sangue da vida fecha-se, o organismo desabrocha como uma rosa. Somos «livres», finalmente (...). Não são as lágrimas que mantêm viva a árvore da vida, mas sim o conhecimento de que a liberdade é real e eterna.»

Henry Miller in 'Plexus'

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domingo, 23 de outubro de 2011

A Castração da Personalidade…

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O Espantalho – R. B. Pinheiro


«O homem é um animal gregário. Político, dizia Aristóteles, ou seja, membro da cidade. Mas não só da cidade - de todas as greis espontâneas ou artificiais, estáveis ou precárias, onde quer que se encontre. Não pode suportar a ideia de estar só, consigo - quer ser unidade e não individualidade. Tem necessidade de se sentir cotovelo com cotovelo, pele com pele, no calor de uma multidão, ligado, seguro, uniforme, conforme. Se o leão anda só, em nós predomina o instinto ovino, do rebanho - os próprios individualistas, para afirmar o seu individualismo, congregam-se: sempre segundo a prática ovina.

O homem, quando só, sente-se incompleto - tem medo. Opor-se à grei significa separar-se, permanecer só, morrer. Os conceitos do bem e do mal nascem da necessidade de convivência. É bem o que aproveita ao grupo, mal o que o prejudica ou não beneficia. O rebanho não quer que cada ovelha pense demasiado em si, e como a privilegiada é a que obtém a boa opinião das outras, vê-se forçada, ainda que contra os seus gostos e interesses, a agir no sentido do bem supremo do rebanho. Há que pagar, com a castração da personalidade, a segurança contra o medo.
Outros rebanhos formam-se em oposição aos rebanhos rivais - e estão unidos, mais do que pelo amor dos componentes entre si, pelo ódio contra o grupo antagonista. Há outros que constituem agrupamentos de fracos que pretendem defender os seus interesses, a sua liberdade e a vida contra os bandos dos fortes; muitíssimos mantêm-se juntos por motivos utilitários e económicos, enquanto alguns proclamam ser constituídos para fins puramente espirituais, para o «triunfo da Ideia», o qual, na maioria das vezes, consiste na repartição dos despojos não ideais dos vencidos.

Este gregarismo tenaz e cada vez mais florescente é uma das grandes provas de que os homens medíocres, embora de raças civilizadas, não ultrapassam o estado selvagem. Para os primitivos, pode-se dizer que o indivíduo não existe - a família e, sobretudo, a tribo, têm toda a responsabilidade e todos os poderes. O selvagem, em relação ao seu clã, é como um membro - cabeça ou braço, em relação a um ser vivo.
Os componentes de uma tribo são simples células de um corpo - vivem nela, para ela e graças a ela. Se um homem tem de escolher uma mulher ou ser iniciado nos mistérios ou ainda partir para a caça, é o grupo que decide e não ele. A vingança e o resgate competem à tribo, à qual pertence, solidariamente, a propriedade da terra. Os primitivos são democráticos e comunistas simultaneamente e vivem em regime de identidade.

Nos civilizados, ainda existem restos dessa existência madrepórica - todos estamos ligados, nas sociedades de tipo antigo, à nossa parentela, tal como cada patrício está intimamente vinculado à oligarquia, todo o nobre à sua casta e todo o soldado ao seu exército. Se os indivíduos são aparentemente livres na realidade, todo o inconformismo de costumes, de pensamentos e de actos é seguido de sanções severas, por vezes explícitas e escritas, ou tácitas, mas não menos graves e temíveis.»

Giovanni Papini in 'Relatório Sobre os Homens'

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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ah, a Moral!...

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Le dejeuner sur l'herbe - E Manet


«Ah, a palavra «moral»! Sempre que aparece, penso nos crimes que foram cometidos em seu nome. As confusões que este termo engendrou abarcam quase toda a história das perseguições movidas pelo homem ao seu semelhante. Para além do facto de não existir apenas uma moral, mas muitas, é evidente que em todos os países, seja qual for a moral dominante, há uma moral para o tempo de paz e uma moral para a guerra. Em tempo de guerra tudo é permitido, tudo é perdoado. Ou seja, tudo o que de abominável e infame o lado vencedor praticou. Os vencidos, que servem sempre de bode expiatório, «não têm moral».
Pensar-se-á que, se realmente glorificássemos a vida e não a morte, se déssemos valor à criação e não à destruição, se acreditássemos na fecundidade e não na impotência, a tarefa suprema em que nos empenharíamos seria a da eliminação da guerra. Pensar-se-á que, fartos de carnificina, os homens se voltariam contra os assassinos, ou seja, os homens que planeiam a guerra, os homens que decidem das modalidades da arte da guerra, os homens que dirigem a indústria de material de guerra, material que hoje se tornou indescritivelmente diabólico. Digo «assassinos», porque em última análise esses homens não são outra coisa. A sangue-frio, anos antes de estalar qualquer conflito, preparam-se para obrigar os outros a obedecer-lhes; enumeram mentalmente todas as formas concebíveis de horror e destruição, e dedicam-se à tarefa calmamente, deliberadamente, implacavelmente, esperando apenas pelo momento certo para levarem à prática os seus planos.
(...) Confrontados com uma nova guerra - porque uma guerra engendra sempre outras - não poderemos esperar que estas «vítimas» se mostrem caridosas e magnânimas. Tendo sofrido contra vontade, exigirão inevitavelmente que os seus filhos e filhas paguem o mesmo tributo... Portanto, o que eu digo é que, se esta escravidão de sacrifício e vingança não é imoral, se não é a forma mais absoluta da imoralidade, então esta palavra não tem sentido. Não estamos a ser destruídos e corrompidos pelos escritos pornográficos ou obscenos; estamos a ser destruídos e condenados, em todos os sentidos, pela guerra e pelo planeamento da guerra.

Henry Miller, in "O Mundo do Sexo"

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domingo, 2 de outubro de 2011

Viver de Olhos Fechados…

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Renoir - La Foret


«É propriamente ter os olhos fechados, sem jamais tentar abri-los, viver sem filosofar; e o prazer de ver todas as coisas que a nossa visão descobre não é comparável à satisfação proporcionada pelo conhecimento daquelas que encontramos por meio da filosofia; e, finalmente, esse estudo é mais necessário para regrar os nossos costumes e conduzir-nos por essa vida do que o uso dos nossos olhos para orientar os nossos passos.
(...) Se desejamos seriamente ocupar-nos com o estudo da filosofia e com a busca de todas as verdades que somos capazes de conhecer, tratemos, em primeiro lugar, de nos libertar dos nossos preconceitos, e estaremos em condições de rejeitar todas as opiniões que outrora recebemos através da nossa crença até que as tenhamos examinado novamente; em seguida, passaremos em revista as noções que estão em nós, e só aceitaremos como verdadeiras as que se apresentarem clara e distintamente ao nosso entendimento.»

René Descartes, in 'Princípios da Filosofia'

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