Rafael Bordalo
Pinheiro
Todas as coisas «boas» foram noutro tempo más; todo o pecado original
veio a ser virtude original. O casamento, por exemplo, era tido como um
atentado contra a sociedade e pagava-se uma multa, por ter tido a imprudência
de se apropriar de uma mulher (ainda hoje no Cambodja o sacerdote, guarda dos
velhos costumes, conserva o jus primae noctis). Os sentimentos doces,
benévolos, conciliadores, compassivos, mais tarde vieram a ser os «valores por
excelência»; por muito tempo se atraiu o desprezo e se envergonhava cada qual
da brandura, como agora da dureza.
A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O «direito» foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbio.
A submissão ao direito: oh! que revolução de consciência em todas as raças aristocráticas quando tiveram de renunciar à vingança para se submeterem ao direito! O «direito» foi por muito tempo um vetitum, uma inovação, um crime; foi instituído com violência e opróbio.
Cada passo que o homem deu sobre a Terra custou-lhe
muitos suplícios intelectuais e corporais; tudo passou adiante e atrasou todo o
movimento, em troca teve inumeráveis mártires; por estranho que isto hoje nos
pareça, já o demonstrei na Aurora, aforismo 18: «Nada custou mais caro do
que esta migalha de razão e de liberdade, que hoje nos envaidece». Esta mesma
vaidade nos impede de considerar os períodos imensos da «moralização dos
costumes» que precederam a história capital e foram a verdadeira história, a história
capital e decisiva que fixou o carácter da humanidade. Então a dor passava por
virtude, a vingança por virtude, a renúncia da razão por virtude, e o bem-estar
passivo por perigo, o desejo de saber por perigo, a paz por perigo, a
misericórdia por opróbio, o trabalho por vergonha, a demência por coisa divina,
a conversão por imoralidade e a corrupção por coisa excelente.
Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral'
Friedrich Nietzsche, in 'A Genealogia da Moral'