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Caldas da Rainha - Passado Presente e Futuro

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Almanaque Caldense de 1963














O Almanaque Caldense de 1963 (quando ainda estudante do ERO) é primeira Publicação em que apareço como escritor, tendo como colaborador o jornalista Fernando Alberto Pimentel.
Escrevi alguns contos e artigos que se encontram dispersos por: a Gazeta das Caldas, O Riomaiorense, o Diário de Lisboa e o Diário Popular.
Mostro-vos, retirando do Blog do ERO (Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão), o que ali publicaram e um conto escrito por mim no Almanaque, com o prefácio Prof. Dr. João Bonifácio Serra.
Agradeço aos colegas do BLog do ERO este recordar.

Em 1963, um conto de João Ramos Franco no Almanaque Caldense
por João Serra
1963 foi o ano do telefone vermelho ligado entre Washington e Moscovo, das lutas dos negros norte-americanos contra a descriminação racial e do assassinato do Presidente, John Kennedy, de 46 anos, em Dallas. O Papa João XXIII morreu em Junho, sucedendo-lhe Paulo VI. No ano anterior, tinha-se inciado a guerra de guerrilha em Angola. Agora era a vez da Guiné. Salazar estava no poder há 35 anos e Portugal em regime sem liberdades há 37. O cinema novo fez a sua aparição nos cinemas portugueses com o filme “Verdes Anos” de Paulo Rocha, enquanto Hitchcock terminava “Os Pássaros”, Losey “O Criado” e Jerry Lewis “As Noites Loucas do Dr. Jerryl”. Bob Dylan editou “The Freewheelin”, os Beatles tornam-se definitivamente referencias mundiais, enquanto os Rolling Stones davam início à sua carreira. João Ramos Franco, 18 anos, caldense, aluno do Externato Ramalho Ortigão, está numa encruzilhada. Falhara dois anos antes o 5º ano de Ciências e tentava agora fazer o 7º de Direito, enquanto repetia o que ficara para trás. Parava pelos cafés, o Central e o Bocage. Conheceu Fernando Alberto Pimentel, guarda-livros da ROL, que o convidou para fazer uma publicação sobre as Caldas. Mais velho 20 anos, Fernando era neto do escritor Alberto Pimentel, escrevera em jornais e colaborava com a “Gazeta das Caldas”. O modelo de publicação que adoptam é o dos Almanaques, onde se somavam informações úteis sobre uma localidade ou um assunto a artigos sobre temas históricos e literários.













O “Almanaque Caldense” é uma obra de 1963. Contém textos sobre organizações caldenses (Os Pimpões, o CCC – Conjunto Cénico Caldense – por exemplo) entrevistas com dirigentes locais e textos literários.













Um deles, que hoje aqui se republica, é da autoria de João Ramos Franco e intitula-se “A Praça”. Trata-se de uma narrativa escrita na primeira pessoa. O autor observa um dia de Inverno da praça caldense a partir de um ponto de observação, o café Bocage. A praça é um microcosmo da sociedade e da economia locais que João procura retratar a partir da presença/ausência de vendedores provenientes da zona rural. O retrato que nos deixa é desolador, como o dia, carregado em tons cinzentos que se comunicam também aos personagens de um mundo triste e conformado.
J. Serra


A PRAÇA
por João Ramos Franco
Dia de Inverno, escuro e triste. Eu, como de costume, sentado numa mesa do Café Bocage, penso que deveria estudar, mas fico olhando aquela praça enorme, triste, com o chão coberto por restos de mercado, que a esta hora já não existe e que espera a chegada dos empregados da câmara para que a limpem.
Aqui e além os pombos pousam sobre esses restos como para provarem a bondade dos homens…
A chuva cai, agora quase que de propósito, como se pensasse que era necessária para acabar de limpar o que os empregados deixaram…
Coitados os pombos ficaram quase sem comida, ela bem podia ter esperado mais um bocado.
Tudo é triste nestes dias, é como se ela perdesse a vida mais cedo. Aquela praça que tem alguma coisa de humano está vazia, só, sem a simplicidade daqueles homens e mulheres que, logo pela manhã e às vezes ainda de noite, a pisam, talvez com sacrifício, porque mais tarde não têm as suas coisas vendidas, mas eles enchem-na todos os dias, chova ou não chova, tendo sempre as mesmas características, as mesmas vestes, homens e mulheres pobremente vestidos, de barrete ou lenço na cabeça, com o respectivo cesto na frente, tentando vender aquilo que debaixo de chuva e frio arrancaram à sua própria terra. Parou de chover, a praça começa agora a ser percorrida por seres que a pisam indiferentes. Seres que, com certeza, não sentem que nela existe parte da vida de outros iguais a eles.

Ergo os olhos daquele chão marcado por quadrados de basalto e calcário e olho agora as paredes das casas que envolvem a praça. Paredes com letreiros, anunciando outro modo de viver dos homens. Paredes limpas de letras mostrando a existência de casas de habitação. E as paredes fendidas por ruas, que fazem lembrar as guelras de um peixe, apenas porque por muita água que entre nelas, só um volume é de oxigénio.
Reparo para o relógio, são 6 horas da tarde, a noite aproxima-se mais escura e triste que o dia e sobre a praça, quase morta, apenas há as sombras das pessoas que a atravessam em direcção a casa ou aos cafés onde começa agora a pairar um ambiente pesado.
O tempo passa rapidamente e o ambiente do café é quase insuportável. Ergo-me da cadeira que ocupei durante toda a tarde e dirijo-me para a porta, onde fico olhando a praça mais uns segundos, e digo para comigo:
- Até já…
Acabei de jantar. Desço os três lances de escada da minha casa e abro a porta. O frio fustiga-me a cara e obriga-me a encolher ainda mais dentro da samarra como que tentando fugir a ele.
Percorro agora as ruas vazias olhando as paredes das casas, marcadas por recortes de luz e pensando que para lá daquelas paredes existe a vida familiar… Uma vida que deveria ser pura e bela…
Entro no café absolutamente abstracto, sento-me e olho a praça através do vidro embaciado por a respiração, ela está envolta por uma neblina que não a deixa ver.
- Sr. João deseja alguma coisa?
As palavras do empregado tiram-me da abstracção em que me encontro.
- Sim, traga-me uma bica e um brandy.
Abro o livro de Física, quase automaticamente e concentro a atenção sobre um capítulo que já li imensas vezes. Perco por completo a noção do tempo e de tudo o que se encontra à minha volta…
Oiço o relógio da Câmara dar duas badaladas. Levanto a vista do livro para a sala. As cadeiras do café sobre as mesas marcam a hora de fechar.
Chamo o empregado.
- Quanto devo?
- São 4$50, Sr. João.
Pago e saio.
Caminho agora lentamente sobre a praça iluminada pela luz ténue dos candeeiros que, por entre o nevoeiro, deixa ver apenas as sombras verticais de prédios que mais parecem sentinelas perpétuas de tudo o que aqui se passa.
E, com passos largos e pesados, olhando em volta como que tentando encontrar alguma coisa sobre a praça naquela noite fria e com nevoeiro, continuo a caminhar sobre ela… O silêncio cortante que só existe em noites como esta é interrompido. O ruído, talvez de uma carroça, aproxima-se lentamente da praça. Olho o relógio, são 3h 15. Distingo agora, no meio do nevoeiro, a sombra de um homem que desce de uma carroça encostada à praça e vejo-o começar a descarregar cestos e colocando-os sobre os quadrados pretos e brancos do chão…
Fixo quase com fervor aquela imagem, como não querendo esquecer o sacrifício daquela gente e caminho em direcção a casa.

João Ramos Franco














As imagens antigas das Caldas que utilizo estão em Caldas da Rainha em postais ilustrados

Comentário Final

O Almanaque não nasceu só pelo desafio só pelo desafio e a proposta do Fernando Alberto Pimentel, para mim não era suficiente estar consciente da cultura que eu pensava ter, nunca tinha sido posta à prova e precisava de ouvir alguém falar-me verdadeiramente sobre mim. Sem eles que conheceram o projecto e reconheceram, que eu tinha capacidade cultural para enfrentar o desafio a que me propunha, “eram poucos mas sinceros”, que eu posso citar os nomes: Dr. Manuel Ramos Franco, Dr. Correia Rosa, Dr. António Freitas. Ferreira da Silva, Dr. Bento Monteiro, Dr. Carlos Saudade e Silva, Cpt. Dario e Dr. Raimundo Neto.
- De entre todos escolho dois casos entre nomes que cito, têm algo a ver comigo quando escrevo o conto, o Cpt. Dário que não passava de capitão na reserva só pactuava com o regime e o Dr. Raimundo Neto “meu explicador (para o 7º ano), homem de 60 anos, Licenciado Ciências Sociais numa Universidade da América do Norte e que tinha vivido em Cuba, em França (onde é Prof. na Sorbonne), Moscovo e Argélia,e onde (segundo ele) estudou e leccionou, é repatriado de França para Portugal e entregue à PIDE, que o coloca com residência fixa nas Caldas e com a proibição de leccionar oficialmente”, que quando da fuga de Álvaro Cunhal e companheiros da Fortaleza de Peniche (1960), é preso e quando regressa ás Caldas, talvez seis meses depois, que alegria de o ver era ofuscada pelo estado físico em que se encontrava.
- Quanto ao meu conhecimento do meio rural o Conto e o meu modo de pensar não teriam sentido se eu não andar para trás no tempo e não contar o meu contacto com a realidade rural do Concelho das Caldas. Meu pai era médico Veterinário Municipal, com ele acompanhei desde muito novo e aprendi a ver o mundo rural do nosso concelho, com pobres, remediados e ricos, que o compunham e sua vida. O meu professor neste contacto com esta realidade social foi ele, com o seu carácter humano e o seu saber.
- Eu sei que é difícil ver a praça como eu a conto, para mim que também a vi alegre e tive noites (quando vinha do Casino) de esperar que a Padaria abrisse e na galhofa com os amigos, o nosso sentir é diferente.
Para todos os que cito o agradecimento é eterno.

João Ramos Franco

3 comentários:

VT disse...

Finalmente a tua minha praça. Obrigado pelo artigo.
Um abraço de grande solidariedade e amizade.
VT

Maria disse...

Esperar que a padaria abrisse....

:))

Maria disse...

Os vendedores da Praça eram, de facto, os primeiros clientes da padaria. O primeiro pão a ser cozido era o chamado 'pão saloio'...
Que memórias me trazes, João. Até consigo sentir os cheiros...