A minha foto
Caldas da Rainha - Passado Presente e Futuro

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Dar Significado ao Tempo






















Cesare Pavese

Dar Significado ao Tempo

Um dos prazeres humanos menos observados é o de preparar acontecimentos à distância, de organizar um grupo de acontecimentos que tenham uma construção, uma lógica, um começo e um fim. Este é quase sempre apercebido como um acme sentimental, uma alegre ou lisonjeira crise de conhecimento de si próprio. Isto aplica-se tanto à construção de uma resposta pronta como à de uma vida. E o que é isto, senão a premissa da arte de narrar? A arte narrativa apazigua precisamente esse gosto profundo.
O prazer de narrar e de escutar é o de ver os factos serem dispostos segundo aquele gráfico. A meio de uma narrativa volta-se às premissas e tem-se o prazer de encontrar razões, chaves, motivações causais. Que outra coisa fazemos quando pensamos no nosso próprio passado e nos comprazemos em reconhecer os sinais do presente ou do futuro? Esta construção dá, em substância, um significado ao tempo. E o narrar é, em suma, apenas um meio de o transformar em mito, de lhe fugir.

Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

Gilbert Becaud - Desiree (1985)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Memória vs Recordação - As Armas da Juventude e da Velhice






















Soren Kierkegaard

Memória vs Recordação - As Armas da Juventude e da Velhice

“Recordar-se não é o mesmo que lembrar-se; não são de maneira nenhuma idênticos. A gente pode muito bem lembrar-se de um evento, rememorá-lo com todos os pormenores, sem por isso dele ter a recordação. A memória não é mais do que uma condição transitória da recordação: ela permite ao vivido que se apresente para consagrar a recordação. Esta distinção torna-se manifesta ao exame das diversas idades da vida. O velho perde a memória, que geralmente é de todas as faculdades a primeira a desaparecer. No entanto, o velho tem algo de poeta; a imaginação popular vê no velho um profeta, animado pelo espírito divino. Mas a recordação é a sua melhor força, a consolação que os sustenta, porque lhe dá a visão distante, a visão de poeta. Ao invés, o moço possui a memória em alto grau, usa dela com facilidade, mas falta-lhe o mínimo dom de se recordar. Em vez de dizer: «aprendido na mocidade, conservado na velhice», poderíamos propor: «memória na mocidade, recordação na velhice». Os óculos dos velhos são graduados para ver ao perto; mas o moço que tem de usar óculos, usa-os para ver ao longe; porque lhe falta o poder da recordação, que tem por efeito afastar, distanciar.
A feliz recordação do velho é, como a feliz facilidade do moço, um gracioso dom da natureza, da natureza que protege com seus cuidados maternais as duas idades da vida que mais precisam de socorro, se bem que, em certo sentido, sejam também as mais favorecidas. Mas é por isso também que a recordação, tal como a memória, muitas vezes não passa de portadora dos dados mais acidentais.
Apesar de se distinguirem por grande diferença, a recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A recordação é efectivamente idealidade, mas como tal, implica uma responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente ao ideal.
A recordação tem por fim evitar as soluções de continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a sua passagem pela terra efectua uno tenore, num só traço, num soporo, e pode exprimir-se na unidade. Assim se liberta ela da necessidade em que a língua se encontra de repassar incessantemente pelas mesmas tagarelices, para reproduzir aquelas de que a vida se encontra repleta. A condição da imortalidade do homem é que a vida dele decorra uno tenore.”

Soren Kierkegaard, in "O Banquete"

jacques Brel _ La Chanson des Vieux Amants

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Existimos em Função do Futuro






















Jean Paul Sartre

Existimos em Função do Futuro

“Tentai apreender a vossa consciência e sondai-a. Vereis que está vazia, só encontrareis nela o futuro. Nem sequer falo dos vossos projectos e expectativas: mas o próprio gesto que surpreendeis de passagem só tem sentido para vós se projectardes a sua realização final para fora dele, fora de vós, no ainda-não. Mesmo esta taça cujo fundo não se vê - que se poderia ver, que está no fim de um movimento que ainda não se fez -, esta folha branca cujo reverso está escondido (mas poderia virar-se a folha) e todos os objectos estáveis e sólidos que nos rodeiam ostentam as suas qualidades mais imediatas, mais densas, no futuro.
O homem não é de modo nenhum a soma do que tem, mas a totalidade do que não tem ainda, do que poderia ter. E, se nos banhamos assim no futuro, não ficará atenuada a brutalidade informe do presente? O acontecimento não nos assalta como um ladrão, visto que é, por natureza, um Tendo-sido-Futuro. E, para explicar o próprio passado, não será a primeira tarefa do historiador procurar o futuro?...”
Jean-Paul Sartre, in 'Situações

"Et moi dans mon coin" Charles AZNAVOUR

domingo, 25 de outubro de 2009

O Centro do Universo






















Arthur Schopenhauer

O Centro do Universo

“Se todo o indivíduo pudesse escolher entre o seu próprio aniquilamento e o do resto do mundo, não preciso dizer para que lado, na maioria dos casos, penderia a balança. Conforme essa escolha, cada um faz de si o centro do universo, refere tudo a si mesmo e considera primeiramente tudo o que acontece - por exemplo, as maiores mudanças no destino dos povos - do ponto de vista do seu interesse. Ainda que este seja muito pequeno e remoto, é nele que pensa acima de tudo. Não existe contraste maior do que aquele entre a alta e exclusiva divisão, que cada um faz dentro do seu próprio eu, e a indiferença com a qual, em geral, todos os outros consideram aquele eu, bem como o primeiro faz com o deles.
Chega a ter o seu lado cómico ver os inúmeros indivíduos que, pelo menos no aspecto prático, consideram-se exclusivamente reais e aos outros, de certo modo, como meros fantasmas.
[...] O único universo que todos realmente conhecem e do qual têm consciência é aquele que carregam consigo como sua representação e que, portanto, constitui o seu centro. É justamente por isso que cada um é em si mesmo tudo em tudo.”
Arthur Schopenhauer, in "A Arte de Insultar"

Jacques Brel - Tango Funèbre

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Verdadeiro Intelectual






















Agostinho da Silva

O Verdadeiro Intelectual

“Não há nenhuma vida verdadeiramente intelectual em que a polémica não seja um acidente, um desnível entre o engenho e a cultura adquirida, por um lado, e por outro, o meio ambiente; o pensador não é, por estrutura, polemista, embora não fuja ante a polémica, nem a considere inferior; o seu domínio é no campo da paz, não entre os instrumentos de guerra; quando a batalha se oferece sabe, como o filósofo antigo, marchar com a calma e a severa repressão dos instintos que o mundo inteiro, ante a sua profissão, tem o direito de exigir; o seu dever de cidadão impõe-lhe que tome, ao ecoar da voz bárbara, a lança que defende as oliveiras sagradas e os rítmicos templos. A sua linha, porém, o fio de cumeadas por que se alongam os seus passos melhores comportam apenas uma invenção superadora, um perpétuo oferecer aos seus amigos humanos de toda a descoberta possibilidade de um caminho mais belo e mais nobre.
Vê-se como um guia e um observador de horizontes que se estendam para além dos limites do mar e dos limites do céu; a sua missão é a de pôr ao alcance de todos o que novamente contemplaram os seus olhos e de os ajudar a percorrer a estrada que abriu ou desvendou; com toda a humildade, todo o carinho que proveem de ter medido a imensa distância que ainda o separa de Deus e de ter aprofundado a tristeza e a treva em que se debatem e se amesquinham seus irmãos; inteligência e caridade não andam longe uma da outra quando são ambas verdadeiras.”
Agostinho da Silva, in 'Considerações e Outros Textos'

Cat Stevens - Father and Son Original

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A Temporalidade


















Jean Paul Sartre

A Temporalidade

“A temporalidade é evidentemente uma estrutura organizada, e esses três pretensos "elementos" do tempo, passado, presente, futuro, não devem ser considerados como uma colecção de "dados" cuja soma deve ser feita - por exemplo, como uma série infinita de "agora", alguns dos quais ainda não são, outros que não são mais -, mas como momentos estruturados de uma síntese original. Senão encontraremos, em primeiro lugar, este paradoxo: o passado não é mais, o futuro ainda não é, quanto ao presente instantâneo, todos sabem que ele não é tudo, é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão.”
Jean-Paul Sartre, in 'O Ser e o Nada'

Ne Me Quitte Pas Jacques Brel

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O Segredo dos Seres e do Mundo

















Albert Camus

“Sentia-me à vontade em tudo, isso é verdade, mas ao mesmo tempo nada me satisfazia. Cada alegria fazia-me desejar outra. Ia de festa em festa. Acontecia-me dançar noites a fio, cada vez mais louco com os seres e com a vida. Por vezes, já bastante tarde, nessas noites em que a dança, o álcool leve, o meu desenfreamento, o violento abandono de cada qual, me lançavam para um arroubo ao mesmo tempo lasso e pleno, parecia-me, no extremo da fadiga e no lapso de um segundo, compreender, enfim, o segredo dos seres e do mundo. Mas a fadiga desaparecia no dia seguinte e, com ela, o segredo; e eu atirava-me outra vez.”
Albert Camus, in "A Queda"

Gilbert Becaud - Desiree (1985)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

"Caim" o 19º romance do único prémio Nobel português da literatura
















É publicado hoje "Caim" o 19º romance do único prémio Nobel português da literatura

A Biblia, "manual de maus costumes", por José Saramago



http://www.josesaramago.org/blog/blogpor.php

sábado, 17 de outubro de 2009

Exactidão















Nasci na Estrada para Foz do Arelho, nº 9 (em frente ao Chafariz), este era um local de passagem diário na minha juventude.

Exactidão

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá:
sentido do não-vivido
a que fica reduzido
o que, escolhido, não há.

Do imo do poder ser,
onde o não-sido se arrasta,
ouvi cadências crescer:
vaga música de ter,
na vida, quanto não basta -

quanto um sentido se entenda,
que nem verdade ou mentira.
(Que o que dele se aprenda
é como cobarde venda
para que a luz nos não fira.

Luz sem luz, brilho da treva
que tudo no fundo é;
e a certeza que se eleva
do fundo da própria treva,
de exacta que seja, é.)

Levam justiça consigo
as palavras que dissermos.
Por quanto sentido antigo,
nelas ficou por castigo
o futuro que tivermos.

Levam as frases sentido
que uma cadência lhes dá.
É justo, injusto - o escolhido?
Como quereis que, vivido,
ele não seja o que será?

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'

Charles Aznavour-Il faut savoir

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O Blogue "HEAVENLY"

















Espero que o meu amigo Vasco Trancoso, me desculpe esta citação.
A sensibilidade ás imagens e músicas ao qual me transporta, têm em mim o efeito beleza/nostalgia o qual venho desfrutando, muitas das vezes sem comentar.
Pode parecer-vos estranho, mas em algumas fotografias que ele nos dá, eu recordo a minha presença no lugar que estou a ver e recuo no tempo cinquenta anos e estou lá a desfrutar a alegria própria do jovem que então era…
Tudo o que vou vendo dia a dia no blogue, mereceria da minha parte, linhas escritas em poesia ou prosa, dedicadas a estes momentos em que em mim o tempo que passou se apaga.
As imagens dos lugares e o despertar na memória a minha presença neles é elo de gratidão o qual não posso deixar expressar.
João Ramos Franco

Amigos para Siempre

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de Mim


















A minha rua vista da varanda (Bairro da Bica)

Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de Mim

Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.

Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente
existe —

Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo

Se a alma é mais real
Que o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade"

Se é mais certo eu sentir
Do que existir a cousa que sinto —
Para que sinto
E para que surge essa cousa independentemente de mim
Sem precisar de mim para existir,
E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?
Para que me movo com os outros
Em um mundo em que nos entendemos e onde coincidimos
Se por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?
Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.
E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.
Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.

Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?
Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida,
Nos meus dias de perfeita lucidez natural,
Sinto sem sentir que sinto,
Vejo sem saber que vejo,
E nunca o Universo é tão real como então,
Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim.
Mas) tão sublimemente não-meu.

Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?
Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?
Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?
E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?
Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,
E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.

Sim, antes de sermos interior somos exterior.
Por isso somos exterior essencialmente.

Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.
Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,
Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,
E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu?

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Man against the World – Survivor

sábado, 10 de outubro de 2009

O momento















Respondi ao apelo que minha ideologia politica me fazia, tudo fiz para contribuir com a minha presença quando fui solicitado e no esclarecimento de indecisos a quem a mensagem passada nos média os deixava ainda mais confusos, tentei contribuir para os esclarecer.
O sinal da abstenção, o desinteresse e os comentários ouvidos nos locais que frequento, (que tudo isto é mais do mesmo), afligiu-me.
Com a certeza de que sou só mais um entre muitos, saí da posição de quem descansadamente coloca o Voto nas urnas e passei à acção colaborante, que o meu desassossego perante os factos presentes tornava obrigatória, o apelo ao Voto.
João Ramos Franco

Jacques Brel - La ville s'endormait -

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Um regresso às origens



















Foi com prazer que me desloquei a Caldas da Rainha no dia 5 Outubro 2009 para ouvir a Conferência:
A Esquerda Democrática e a Gestão Autárquica
Participam Dra. Luísa Arroz, Dr. João Bonifácio Serra e Dr. Augusto Santos Silva.
Com agrado escutei os conferencistas, o debate aberto ao público e o esclarecimento das questões levantadas.
Ouvi a intervenção do Eng. Delfim Azevedo, candidato pelo Partido Socialista à Câmara Municipal e conversei um pouco com ele, também gostei de ouvir e conhecer.

O convite da Dra. Isabel Xavier, para no dia 6 Outubro 2009 ouvir a Conferência: "A República e o Republicanismo um século depois" proferida pelo Dr. João B. Serra, às vinte e uma horas, no auditório da Biblioteca Municipal das Caldas da Rainha, era também motivo da minha deslocação. O imprevisto da tempestade que caiu sobre a cidade pelas 19h30, levou-me a faltar. (Só se comparesse-se, trajando roupão e pijama...)
João Ramos Franco

george moustaki

sábado, 3 de outubro de 2009

Cidadania - Will Kymlicka






















1. Cidadania e teoria democrática
"Cidadania" é um termo cujo significado filosófico difere do seu uso quotidiano. No discurso quotidiano, a cidadania é entendida como sinónimo de "nacionalidade", referindo-se ao estatuto legal das pessoas enquanto membro de um país em particular. Ser um cidadão implica ter certos direitos e responsabilidades, mas estes variam imenso de país para país. Por exemplo, os cidadãos de uma democracia liberal têm direitos políticos e liberdades religiosas, ao passo que numa monarquia, numa ditadura militar ou numa teocracia religiosa podem não ter nenhum desses direitos.
Nos contextos filosóficos, a cidadania refere-se a um ideal normativo substancial de pertença e participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como um membro pleno e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político. Como tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são governadas por monarquias ou ditaduras militares são súbditos e não cidadãos.
Esta ligação entre a cidadania e a democracia é evidente na história do pensamento ocidental. A cidadania era um tema proeminente entre os filósofos das repúblicas da Grécia e Roma antigas, mas desapareceu do pensamento feudal, sendo apenas reavivado com o renascer do republicanismo no Renascimento. Na verdade, é por vezes difícil distinguir a cidadania, enquanto tópico filosófico, da democracia. Contudo, as teorias da democracia centram-se sobretudo nas instituições e processos — partidos políticos, eleições, legislaturas e constituições — ao passo que as teorias da cidadania se centram nos atributos dos cidadãos individuais.
As teorias da cidadania são importantes porque as instituições democráticas desmoronar-se-ão se os cidadãos carecerem de certas virtudes, tais como um espírito cívico e boa-vontade mútua. De facto, muitas democracias sofrem com de apatia por parte dos eleitores, de intolerância racial e religiosa, e fuga significativa aos impostos ou às políticas ambientais que dependem da cooperação voluntária. A saúde de uma democracia depende não apenas da estrutura das suas instituições mas também das qualidades dos seus cidadãos: por exemplo, das suas lealdades e de como eles encaram identidades nacionais, étnicas ou religiosas potencialmente rivais; da sua capacidade para trabalhar com pessoas muito diferentes de si mesmos; do seu desejo de participação na vida pública; da sua boa-vontade para serem moderados nas suas exigências económicas e nas suas escolhas pessoais que afectem a sua saúde e o meio ambiente.
2. As responsabilidades da cidadania
Na Atenas antiga, a cidadania era primariamente vista em termos de deveres. Os cidadãos eram obrigados, legalmente, a assumir cargos públicos à vez, sacrificando parte da sua vida privada para poder fazê-lo. No mundo moderno, contudo, a cidadania é vista mais como uma questão de direitos do que de deveres. Os cidadãos têm o direito de participar na política, mas têm também o direito de colocar os seus compromissos privados acima do seu envolvimento político.
Uma exposição influente desta concepção de "cidadania como direitos" encontra-se em Citizenship and Social Class (1950), de T. H. Marshall. Marshall divide os direitos de cidadania em três categorias: direitos civis, que surgiram na Inglaterra no século XVIII; direitos políticos, que surgiram no século XIX; e direitos sociais — por exemplo, a educação, saúde, fundo de desemprego e reforma — que se estabeleceram no século XX. Para Marshall, o culminar do ideal de cidadania é o estado-providência social-democrata. Ao garantir direitos civis, políticos e sociais a todos, o estado-providência assegura que todos os membros da sociedade podem participar plenamente na vida comum da sociedade.
Chama-se muitas vezes cidadania "passiva" a esta teoria, pois coloca a ênfase nas regalias passivas e na ausência de deveres cívicos. Apesar de esta teoria ter ajudado a assegurar um grau razoável de segurança, prosperidade e liberdade para a maior parte dos membros das sociedades ocidentais, a maior parte dos pensadores pensam que a aceitação passiva de direitos tem de ser complementada pelo exercício activo de responsabilidades e virtudes. Os pensadores discordam, contudo, sobre que virtudes são as mais importantes e sobre o modo de melhor as promover.
Os conservadores sublinham a virtude da auto-suficiência. Ao passo que Marshall argumentava que os direitos sociais permitem que os desfavorecidos participem nos aspectos centrais da sociedade, os conservadores argumentam que o estado-providência promoveu a passividade e dependência entre os pobres. Para promover a cidadania activa, devemos reduzir as regalias do estado-providência, e dar mais importância à responsabilidade de ganhar a vida, que é o aspecto central para a auto-estima e para a aceitação social. Os críticos respondem que cortar as regalias do estado-providência marginaliza ainda mais as classes mais baixas. Além disso, como as feministas sublinham, a conversa aparentemente neutra sobre a "auto-suficiência" é muitas vezes uma forma de dizer subterraneamente que os homens devem sustentar financeiramente a família, cabendo à mulher o papel de olhar pela casa, cuidar dos velhos, dos doentes e das crianças. Isto reforça as barreiras à participação plena das mulheres na sociedade.
Os defensores da teoria da sociedade civil centram as suas atenções no modo como aprendemos a ser cidadãos responsáveis. Argumentam que é nas organizações da sociedade civil — igrejas, famílias, sindicatos, associações étnicas, grupos de ambientalistas, associações de bairro, grupos de apoio — que aprendemos as virtudes cívicas. Porque estes grupos são voluntários, quando não cumprimos as nossas responsabilidades no seu seio temos de enfrentar a desaprovação e não a punição legal. Contudo, porque esta desaprovação tem origem na família, amigos e colegas, é muitas vezes um incentivo mais poderoso para agir de forma responsável do que a punição por parte de um estado impessoal.
A afirmação de que a sociedade civil é a fonte da virtude cívica é discutível. A família ensina a civilidade e a moderação, mas também pode ser "uma escola de despotismo" que ensina o domínio masculino sobre as mulheres. Analogamente, as igrejas ensinam muitas vezes a deferência perante a autoridade e a intolerância relativamente a outras fés; os grupos étnicos ensinam muitas vezes preconceitos contra outras raças, etc.
Os defensores da teoria da virtude liberal sublinham a importância da capacidade dos cidadãos para o discurso público. Isto não significa apenas a capacidade para dar a conhecer os nossos pontos de vista; implica igualmente a virtude da "razoabilidade pública". Os cidadãos têm de dar razões para as suas exigências políticas, e não apenas exprimir preferências ou fazer ameaças. Além disso, estas razões têm de ser "públicas", no sentido de poderem persuadir pessoas de diferentes fés e nacionalidades. Não basta invocar a escritura ou a tradição; é necessário fazer um esforço consciencioso para distinguir as ideias que são matéria de fé pessoal das que podem ser defendidas publicamente.
Onde aprendemos então esta virtude? Os defensores da teoria da virtude liberal sugerem muitas vezes que é nas escolas que se deve ensinar as crianças a distanciar-se das suas próprias tradições culturais quando se entregam ao discurso público e a ter em consideração pontos de vista diferentes. Contudo, os tradicionalistas objectam que isto encoraja as crianças a questionar, na sua vida privada, a autoridade familiar ou religiosa. Os grupos que se apoiam na aceitação acrítica da tradição e da autoridade ficam ameaçados pela abertura de espírito e pelas atitudes pluralistas que a educação liberal encoraja. Daí que alguns grupos religiosos vejam a educação liberal obrigatória como um acto de intolerância relativamente a eles, ainda que tal se faça em nome do ensino da virtude da tolerância.
Os republicanos cívicos oferecem outra abordagem à cidadania responsável. No sentido mais geral, "republicano cívico" refere qualquer pessoa que pense ser necessário ter cidadãos activos e responsáveis. Mas há uma concepção mais restrita de republicanismo cívico, que se distingue por defender (na peugada de Aristóteles) o valor intrínseco da participação política. Tal participação é, nas palavras de Adrian Oldfield, "a mais alta forma de vida humana em comum a que a maior parte dos indivíduos pode aspirar (1990: 6). Deste ponto de vista, a vida política é superior aos prazeres meramente privados da família, da vida local e da profissão, devendo por isso ocupar o centro da vida das pessoas.
Esta perspectiva entra em conflito com o entendimento moderno da vida boa no mundo ocidental. A maior parte das pessoas de hoje encontra na família, no trabalho, religião ou tempos livres a sua maior felicidade — e não na política. A participação política é vista como uma actividade ocasional, por vezes desagradável, que é necessária para assegurar que o governo respeita e apoia a liberdade das pessoas para se entregarem aos seus projectos e interesses pessoais. O pressuposto de que a política é primariamente um meio para proteger e promover a vida privada está subjacente à maior parte das perspectivas modernas da cidadania. Esta atitude reflecte o empobrecimento da vida pública de hoje, em contraste com a cidadania activa da antiga Grécia. O debate político parece hoje menos significativo, e as pessoas sentem-se menos capacitadas para participar de forma eficiente. Mas reflecte também um enriquecimento da vida privada, dada a maior proeminência do amor romântico e da família nuclear (que dá ênfase à intimidade e à privacidade); uma maior prosperidade (e por isso formas mais ricas de ócio e consumo); e crenças modernas na dignidade do trabalho (que os gregos desprezavam). O convite à cidadania activa tem hoje em dia de competir com a forte atracção que a vida privada exerce.
3. Cidadania, identidade e diferença
A cidadania não é apenas um estatuto, definido por um conjunto de direitos e responsabilidades. É também uma identidade, uma expressão da nossa pertença a uma comunidade política. Além disso, é uma identidade partilhada, comum a diversos grupos na sociedade. Logo, a cidadania tem uma função integradora. Alargar os direitos de cidadania tem ajudado a integrar grupos previamente excluídos, como a classe trabalhadora, na sociedade.
Alguns grupos, contudo — por exemplo, os afro-americanos, os povos indígenas, as minorias étnicas e religiosas, os gays e as lésbicas — sentem-se ainda excluídos do seio da sociedade, apesar de possuírem direitos iguais de cidadania. De acordo com os pluralistas culturais, a cidadania tem de reflectir a identidade sociocultural distinta destes grupos — a sua "diferença". Os direitos comuns de cidadania, originalmente definidos pelos homens brancos, e para eles, não podem acomodar as necessidades dos grupos marginalizados. Estes grupos só podem integrar-se completamente através do que Iris Marion Young chama "cidadania diferenciada" (1989). Isto é, os membros de certos grupos devem ser incorporados na comunidade política não apenas enquanto indivíduos, mas também através do grupo, e os seus direitos devem depender em parte da sua pertença ao grupo.
Esta perspectiva põe em causa as concepções tradicionais da cidadania, que a definem em termos do tratamento das pessoas como indivíduos com direitos iguais à luz da lei. É assim que a cidadania democrática se distingue canonicamente das perspectivas feudais e pré-modernas, que faziam depender o estatuto político das pessoas da sua religião, etnicidade, classe social ou sexo. Logo, a ideia de cidadania diferenciada, é vista por muita gente como uma contradição dos termos. Além disso, se os grupos forem encorajados pelos próprios termos da cidadania para se voltarem para dentro, sublinhando a sua "diferença", como pode a cidadania fornecer uma fonte de ligação e solidariedade para os vários grupos da sociedade?
É importante distinguir aqui duas categorias gerais de cidadania diferenciada. Para alguns grupos — como os pobres, as mulheres, as minorias raciais e os imigrantes — a exigência de direitos de grupo é geralmente uma exigência de maior inclusão e participação na sociedade. Por exemplo, estes grupos podem sentir-se sub-representados no processo político, devido a barreiras históricas, procurando por isso representação com base em grupos. Ou podem querer que o currículo da escola reconheça as suas contribuições para a cultura e história da sociedade em causa. Ou podem procurar isenções de leis que os desfavorecem economicamente, dadas as suas crenças e práticas. Estes grupos partilham o objectivo da integração nacional — isto é, aceitam que os grupos historicamente sofreram desvantagens devem tornar-se participantes plenos e iguais na sociedade. Defendem apenas que é necessário o reconhecimento e a acomodação da sua "diferença" para assegurar a integração.
Outros grupos que exigem cidadania diferenciada rejeitam o objectivo da integração nacional. Desejam governar-se a si mesmos, à parte da sociedade em geral. Isto acontece sobretudo com minorias nacionais — isto é, comunidades históricas distintas, que ocupam o mesmo país ou território e que partilham uma linguagem e história distintas. Estes grupos estão nas margens de uma comunidade política mais lata, mas reivindicam o direito a governarem-se a si mesmos em certos aspectos, de modo a assegurar o livre desenvolvimento da sua cultura. O que estas minorias nacionais querem não é, primariamente, uma melhor representação no governo central, mas antes a transferência de poder do governo central para as suas comunidades, muitas vezes através de um tipo qualquer de federalismo ou autonomia local. Em vez de procurarem maior inclusão na sociedade em geral, procuram uma maior autonomia relativamente a ela.
Este tipo de exigência põe em causa as perspectivas tradicionais da identidade de cidadania, que pressupõe que as pessoas se encaram como membros da mesma sociedade. Se a democracia é o governo do povo, as exigências de auto-governo levantam a questão de saber quem é realmente "o povo". As minorias nacionais afirmam que são "nações" ou "povos" distintos, com direitos inerentes à auto-determinação que não foram abandonados pela sua federação (muitas vezes involuntária) com outras nações num país mais lato. Os direitos de auto-governo dividem o povo em povos separados, cada qual com os seus próprios direitos, territórios e poderes de auto-governo; e, logo, cada um tem a sua comunidade política autónoma. Se a cidadania é a pertença a uma comunidade política, então os direitos de auto-governo dão origem a uma espécie de cidadania dual, e a conflitos sobre com que comunidade — o grupo nacional ou o estado — os cidadãos mais se identificam. Além disso, se uma autonomia limitada é desejável para uma minoria nacional, por que não entrar completamente em secessão e ter uma nação-estado totalmente autónoma?
Com efeito, os países com minorias nacionais enfrentam o problema de nacionalismos conflituantes. O estado procura promover uma identidade nacional única através da cidadania comum; a minoria procura promover a sua identidade nacional distinta através da cidadania diferenciada. Encontrar uma fonte de unidade social em países multinações é uma questão fundamental que os pensadores da cidadania enfrentam.
Will Kymlicka
Tradução de Desidério Murcho "Citizenship", in E. Craig (org.), Routledge Encyclopedia of Philosophy (London: Routledge, 1998).

One Love | Playing For Change | Song Around the World

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Passear pela história - Liberdade civil - Jean Jacques Rousseau






















Liberdade civil

Na resolução do estágio de conflito generalizado é estabelecido o contrato social. Tal contrato é para Rousseau o que forma um povo enquanto tal, sendo precedente a formação do Estado e do governo. Esses são decorrentes da organização e do acordo vigentes na constituição do povo. Aqui Rousseau estabelece um princípio de organização das instituições políticas, no qual a organização de um povo em relação à propriedade, aos direitos e aos deveres de cada indivíduo são estipulados na lei, a partir do contrato social que orienta a constituição do Estado e da legislação. Um dos aspectos normativos do projecto rousseauniano é o de querer demonstrar a lógica dos princípios políticos do Estado e, simultaneamente, medidas utilitárias para a acção política dos indivíduos e do Estado, por exemplo, estipular que a igualdade se dê juridicamente mesmo reconhecendo que o princípio da desigualdade decorrente da propriedade privada ainda se mantém na ordem civil. Assim estipula uma reformulação nas instituições políticas que não dá conta do problema económico - político, delineado pelo próprio Rousseau, da desigualdade de recursos e de propriedades.
Referindo-se a lei, Rousseau não considera as leis vigentes satisfatórias (leis instituídas na monarquia, na aristocracia). Sua intenção é estabelecer um padrão das leis (que seria uma forma de superar as oposições entre indivíduo e Estado), baseado na igualdade, sendo esse critério indispensável para o contrato social. Portanto, a justiça estabelecida na lei deve ter reciprocidade entre os indivíduos, cada um tendo seus direitos e deveres, tanto o soberano quanto os súbitos. Por isso, as leis devem representar toda a sociedade, sendo consideradas como vontade geral (não no sentido de uma união das vontades individuais e sim da vontade do corpo político). Porém, Rousseau não descarta a possibilidade de “guias” para a tomada de decisões, isto é, um Legislador que possua uma “inteligência superior ”. Tal legislador teria uma das tarefas mais exigentes na sociedade: estipular regras e normas que limitam a liberdade de cada indivíduo em nome do bem desses. Para tanto deve ser capaz de exercer tal poder sem beneficiar-se, o legislador não deve tornar-se um governante autoritário afastado do corpo político. “The laws, it seems, have to be made, as well as be executed, by representatives.”(HARRISON, 1995, p. 61).
Portanto, as leis estabelecidas no contrato social asseguram a liberdade civil através dos direitos e deveres de cada cidadão no corpo político da sociedade. Mas para isso, cada cidadão deve “doar-se” completamente, submetendo-se ao padrão colectivo.
Vale ressaltar que o factor limitante da liberdade civil é a vontade geral, uma vez que ela visa à igualdade (o que torna os indivíduos realmente livres), pois a liberdade no estado civil não se dá apenas pelos interesses particulares, mas também pelos interesses do corpo político. Assim, o contrato social não apenas iguala todos os cidadãos, como também fortalece a liberdade de cada indivíduo, a partir de seus interesses particulares. Uma vez que um dos principais objectivos do contrato social é garantir a segurança e a liberdade de cada indivíduo, ainda que a última seja limitada por normas.
“Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece”. (ROUSSEAU, 1978, p. 32)
Contudo o contrato de Rousseau oferece outra solução: a separação nominal jurídica do público e do privado. Tal separação é o que garante a igualdade política a cada pessoa que passa a ser um cidadão de direitos e deveres na esfera pública e com liberdade comercial e livre expressão de ideias, uma vez que é um indivíduo único. Tal princípio de separação, além de ser uma tentativa lógica de equacionar o problema – liberdade e igualdade – é um pesado ataque a ordem política feudal, na qual os laços de sangue e de parentesco determinavam o tratamento político diferenciado e limitavam a participação política de cada cidadão.
O Estado, tal como é proposto por Rousseau no Contrato Social, assegura a liberdade de cada cidadão através da independência individual privada e da livre participação política. Sendo que para Robert Nisbet: “Esta predominância do Estado na vida do indivíduo não constitui, entretanto, despotismo; constitui a base necessária da verdadeira liberdade individual.” (NISBET, 1982, p. 158).
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