sábado, 19 de novembro de 2011
A Dependência é a Raiz de Todos os Males…
«O que deve um cão a um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende do seu semelhante. Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade a que se chama razão, qual foi o resultado? Ser escravo em quase toda a terra. Se o mundo fosse o que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem subsistência fácil e certa e clima apropriado à sua natureza, impossível teria sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o mundo de frutos salutares. Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos gansos e cabras monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na velhice.
No estado natural de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem, e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para quê servidores se não tivésseis necessidade de nenhum serviço? Ainda que passasse pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por submeter o seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o opressor tivesse tomado as suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de distância. Todos os homens seriam necessariamente iguais, se não tivessem necessidades. A miséria que avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem - o verdadeiro mal não é a desigualdade: é a dependência.
Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza, tal outro Sua Santidade. Duro porém é um servir o outro. Uma família numerosa cultivou um bom terreno. Duas famílias vizinhas têm campos ingratos e rebeldes: impõe-se-lhes servir ou eliminar a família opulenta. Uma das duas famílias indigentes vai oferecer os seus braços à rica para ter pão. A outra vai atacá-la e é derrotada. A família servente é fonte de criados e operários. A família subjugada é fonte de escravos. Impossível, neste mundo miserável, que a sociedade humana não seja dividida em duas classes, uma de opressores, outra de oprimidos. Essas duas classes subdividem-se em mil outras, essas outras num sem número de cambiantes diferentes. Nem todos os oprimidos são absolutamente desgraçados. A maior parte nasce nesse estado, e o trabalho contínuo impede-os de sentir toda a miséria da sua própria situação. Quando a sentem, porém, são guerras, como a do partido popular contra o partido do senado em Roma, as dos camponeses na Alemanha, Inglaterra, França. Mais cedo ou mais tarde todas essas guerras terminam com a submissão do povo, porque os poderosos têm dinheiro e o dinheiro tudo pode no Estado. Digo no Estado, porque o mesmo não se dá de nação para nação. A nação que melhor se servir do ferro sempre subjugará a que, embora mais rica, tiver menos coragem.
Todo o homem nasce com forte inclinação para o domínio, a riqueza, os prazeres e sobretudo para a indolência. Todo o homem portanto quereria estar de posse do dinheiro e das mulheres ou das filhas dos outros, ser-lhes senhor, sujeitá-los a todos os seus caprichos e nada fazer ou pelo menos só fazer coisas muito agradáveis. Vedes que com estas excelentes disposições é tão difícil aos homens ser iguais quanto a dois pregadores ou professores de teologia não se invejarem. Tal como é, é impossível o género humano subsistir, a menos que haja uma infinidade de homens úteis que nada possuam. Porque, claro é que um homem satisfeito não deixará a sua terra para vir lavrar a vossa. E se tiverdes necessidade de um par de sapatos, não será um referendário que vo-lo fará. Igualdade é pois a coisa mais natural e ao mesmo tempo a mais quimérica.
Como se excedem em tudo que deles dependa, os homens exageraram essa desigualdade. Pretendeu-se em muitos países proibir aos cidadãos sair do lugar em que a ventura os fizera nascer. O sentido dessa lei é visivelmente: este pais é tão mau e tão mal governado que vedamos a todo o indivíduo dele sair, por temor que todos o desertem. Fazei melhor: infundi em todos os vossos súbditos o desejo de permanecer no vosso Estado, e aos estrangeiros o desejo de para aí vir. Nos íntimos refolhos do coração todo o homem tem o direito de crer-se de todo o ponto de vista igual aos outros homens. Daí não segue dever o cozinheiro de um cardeal ordenar ao seu senhor que lhe faça o jantar; pode todavia dizer: "Sou tão homem como o meu amo; nasci como ele a chorar; como eu ele morrerá nas mesmas angústias e com as mesmas cerimónias. Temos ambos as mesmas funções animais. Se os turcos se apoderarem de Roma e eu me tornar cardeal e o meu senhor cozinheiro, tomá-lo-ei a meu serviço". Tudo isso é razoável e justo. Mas, enquanto o grão turco não se assenhorear de Roma, o cozinheiro precisa de cumprir as suas obrigações, ou toda a humanidade se perverteria.
Um homem que não seja cozinheiro de cardeal nem ocupe nenhum cargo no Estado; um particular que nada tenha de seu mas a quem repugne o ser em toda a parte recebido com ar de proteção ou desprezo; um homem que veja que muitos monsignori não têm mais ciência, nem mais espírito, nem mais virtude que ele, e que se enfade de esperar nas suas antecâmaras, que partido deve tomar? O da morte?...»
Voltaire in 'Dicionário Filosófico'
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Publicada por
João Ramos Franco
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